Você não, autista.

Diana Coe
6 min readApr 25, 2023

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Nossa não linearidade solitária.

O impacto de ser autista.

Ser autista adulto é viver constantemente com o medo de a qualquer momento você parar de funcionar, sendo que tudo depende somente de você. Trabalho, dinheiro, comida, limpeza, cuidar dos gatos, pagar as contas, pagar pessoas, administrar empresa.

Tudo depende de você. Se você não funciona sua vida colapsa. Você não tem pra onde fugir.

Dissocia.

Conta com suas altas habilidades.

Elas são a única esperança que você tem.

Será?

Jogar o lixo é difícil.

Molhar as plantas é difícil.

Trabalhar? Como?

Disfuncional.

Ser autista é colocar suas responsabilidades com os outros na frente. Sempre.

Vai quebrar?

Não interessa.

Você tem trabalho. Você tem clientes.

Dissocia.

Fragmenta.

Mesmo que isso te custe uns anos de vida.

Depois você quebra.

Se vira, autista.

Ser autista é saber que infelizmente as pessoas sabem que não podem contar com você sempre.

Até pra coisas mais simples (para as pessoas típicas).

Sair de casa, ir na rua ao lado e molhar as plantas, enquanto seu ex viaja.

Descer pra pegar algo com com alguém, na sua própria portaria. Ou entregar algo.

Difícil, não da pra contar com você. Você não sabe como vai estar.

É marcarem com você algo com antecedência, afinal você não consegue fazer as coisas no imprevisto na grande esmagadora maioria das vezes.

Mas mesmo assim você não sabe como vai estar.

Chega no dia, crise.

E você não consegue ir.

Não da pra contar com você.

Todos saem sempre.

Criam laços.

Você não.

Você fica pra trás, como sempre.

Ser autista é ver todo mundo com amizades de infância.

Mas você não, porque você não sabia como criar laços.

Mas mais do que isso, você não sabia como manter esses laços.

E eles se rompiam.

Porque te chamavam e você não ia.

Ou te chamavam e você até ia, mas ficava desconfortável em algum momento.

E ia embora cedo.

Enquanto os outros, continuavam fortalecendo seus laços.

Você não.

Não conseguia.

Então passou a maior parte da vida sozinha.

Com amizades de momentos, esporádicas.

Na própria solidão. Na própria solitude.

Ser autista é ver as pessoas vivendo suas vidas.

Enquanto você vive a sua no mundo dos sonhos.

Porque acordada, você não consegue.

Tão simples, só pegar e fazer. Né?

Só pegar e sair.

Só e só e só.

Mas você não, você não consegue.

É como se você tivesse correntes invisíveis te impedindo.

Então, você é uma observadora.

Só isso.

Ah, autista… Pelo menos você sonha.

Ser autista é saber que por mais que você tente explicar o que se passa dentro de você ninguém vai entender.

Você pode falar, falar, falar.

Você pode mostrar dados.

Você pode mostrar mais autistas.

Não importa.

Ninguém vai te compreender.

Eles não vivem isso.

Não é culpa deles.

Tudo bem.

Você releva.

E continua.

Afinal, como provar o intangível?

Ser autista é saber que você vai sentir os olhares.

Em algum momento.

A estranheza.

Um dia você é um.

No outro, você é outro.

Esquisita.

Inconstante.

Fragmentada. Quantas de você existem?

Que contraditória!!!

Ser autista é saber,

que nada do que você fizer nunca vai ser suficiente pro outro.

“Você devia sair mais”.

“Mas é rapidinho”.

“Você nunca sai com a gente”.

“Você vai embora muito cedo”.

“Você some”.

“Você parou de responder.”

“Você não se importa”.

“Você não se esforça.”

“Nem chama, ela não vem mesmo”.

“Você nem tenta entender”.

“Você que não quis”.

Ser autista?

É ver.

Sentir.

Querer falar.

Querer responder.

Querer ajudar.

Mas naquele momento.

Você não consegue.

Está congelada.

Está no fundo da garrafa.

Então você fica pra trás.

De novo.

Porque afinal, se você se importasse.

Respondia.

Ajudava.

Ser autista é saber que a sua vida vai ser pra sempre solitária.

Porque parece que todos vivem em uma frequência.

Você não.

Sua frequência é outra.

E até entre nós mesmos, autistas, é outra.

Parece que até entre nós, não conseguimos nos encontrar.

Cada um em um universo. No seu.

As vezes acontece. Acabamos compartilhando frequências. Mas logo muda.

Porque os outros, vivem numa frequência constante.

Você não.

Não para em uma.

Você nunca sabe em qual vai estar.

É inconstante.

Imprevisível.

Ironia, não?

Contraditório.

Você precisa de constância e previsibilidade.

Mas você é a própria inconstância.

Ser autista é ver o mundo se movendo enquanto parece que você fica pra trás.

Porque todo mundo está vivendo.

Você não.

Você tem outras coisas pra se preocupar.

Sobreviver mais um dia.

Ser autista é ver todos num fluxo linear de tempo.

Constante.

Fluido.

Você não.

Você não tem nem essa constância.

Que "deveria" ser igual pra todos.

Você vive em lapsos temporais.

Que te arrastam pelo tempo.

Te jogam no passado.

Te mostram o futuro.

Por que afinal, você precisa saber.

Cada futuro possível.

Cada cenário possível.

Previsibilidade.

Então ao invés de conseguir viver no mesmo tempo que os outros.

Você está presa. (ou isso é estar solta demais? Jogada sem rumo).

Com o passado você está buscando todos os acontecimentos que te quebraram.

Com o futuro você está prevendo os cenários, com base no passado.

Afinal, você não quer que te quebrem de novo.

Então se prepara.

Mas ao se preparar, você sai do fluxo natural do tempo.

Então todos estão aqui no presente vivendo.

Você não.

Você está numa espiral atemporal.

Que te joga em todos os tempos.

Menos no presente.

Que era onde você gostaria de estar.

Com os outros.

Porque ali, não seria tão solitário.

Ser autista é ver todos sendo bombardeados com estímulos sensoriais.

E permanecerem em equilíbrio.

"Como assim? Nada demais".

Você não.

Só você sabe e sente o que acontece dentro de você.

Só você sabe o quanto queima.

O quanto arde.

O mínimo dos estímulos.

E mesmo assim, você tentar conter isso somente no interno.

Pra não te olharem de novo daquela forma.

Então você mascara.

E dissocia.

Vamos esconder.

Ser autista é saber que pra todos homeostase significa uma coisa.

Mas pra você não.

Pra você a homeostase é uma utopia.

É uma guerra.

Afinal, você vive na própria distopia.

Ser autista é ver a vida que você quer viver.

Saber que você poderia (e poderia muito) alcançar.

Mas não.

A cada passo que você da em direção a ela.

Você tropeça em mais um buraco.

A estrada da maioria das pessoas é quase linear.

Ela tem desvios, buracos e muitos obstáculos.

(Óbvio, não estou diminuindo dificuldades e vivências, estou falando sob uma outra lente).

Mas a sua não.

A sua, nem é uma estrada.

Se for uma estrada, ela não é horizontal.

Nem vertical.

Muito menos linear.

Ela é algo fora.

Do espaço e tempo comuns.

Não tem como descreve-la.

Ela te queima, te arde, te machuca e te arrasta.

E você muitas vezes tem que segui-la na escuridão total.

Fingindo que ela é linear, assim como as dos outros.

Porque talvez assim, você consiga sentir um pouquinho o que os outros sentem.

Então você mascara.

Ser autista é ver as pessoas ficarem doente.

E você perguntar “por que”?

E a pessoa ter uma resposta.

Por causa disso. Ou isso. Ou aquilo.

Você não.

Você fica doente.

Você sente dores.

Você fica com febre.

Você queima.

E a resposta é quase sempre.

Porque sim.

E do nada sumir.

"Ela é estranha. Deve estar querendo chamar atenção".

Depois de um certo tempo, você entende..

Ah então devo queimar em silêncio. Entendi.

Silêncio.

Você pode queimar, mas ninguém pode saber.

Esconde.

Ser autista é você estar bem.

Dias bem.

Em equilíbrio.

E pensar "Tem algo errado".

"Vou quebrar".

Porque isso não é comum pra você.

E acaba que você não pode nem se quer aproveitar.

A estabilidade.

Porque ela não vai durar.

E você sabe disso.

Afinal, as crises estão à espreita.

Seus próprios monstros.

E sem nenhum, absolutamente nenhum motivo.

Eles vão te engolir.

Questão de tempo.

Ser autista é você estar funcionando bem.

Estar orgulhosa de você.

E no dia seguinte.

Você não é capaz de comer.

Porque não consegue.

Não consegue se mexer.

É buscar o motivo pra isso.

E não encontrar.

Ser autista é ver o mundo seguindo.

Mas você não.

Você segue cada passo sabendo que em breve vai pisar em uma mina.

Que vai te jogar pra fora novamente.

Do tempo e espaço dos outros.

E te puxar pra onde não tem luz.

Afogada pela própria essência.

Ser autista é viver em um mundo que não foi feito pra você.

Não foi pensado pra você.

Não foi projetado pra você.

É você ser fogo em um mundo de água.

E por mais que você queime por dentro.

Por fora você é apagada.

E fica pra trás.

De novo.

De novo.

De novo.

Enquanto todo mundo segue.

Mas você não.

Você observa.

Esperando a próxima homeostase.

Pra poder viver um pouquinho de novo.

Mas sabendo que será breve.

E você tem hora pra voltar.

Pra sua propria solidão.

Porque ser autista é solitário.

Mas a gente tenta.

Eu juro.

Que a gente tenta.

Esse texto é unicamente sobre a minha vivência autista. Nenhum autista é igual ao outro. Agradeço quem leu até o final.

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Diana Coe

Design, Ciência, Autismo, Emoção e Natureza. Tento ampliar as possibilidades de futuros e caminhos através de perspectivas neurodivergente e interdisciplinares.